06/01/2022, 0:00 h
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Nota prévia – Na nossa vida por mais que se repitam os atos onde se nos colam as imagens que de nós fizeram também gente, jamais nos cansamos de as reviver. Assim é que, creio que há cerca de 7 anos publiquei estas duas passagens de menino/jovem, nascido, crescido e amado entre gente humilde da terra que muito me orgulho ter sido também sua pertença. Também por isso, com as minhas desculpas me atrevo a repetir o conto nesta “nossa” Gazeta.
“Os cantadores das Janeiras e… a Dança do Menino”
Uma pandeireta sem fundo, a roda de aço suspensa na baraça do pião e uma harmónica de beiços que “gemia” em agonia três ou quatro notas soltas perfazia o instrumental que servia de fundo a meia dúzia de vozes franzinas que rompiam por entre o silêncio das noites gélidas cercadas pelo luar dum janeiro a nascer:
«Olhei para o céu, estava estrelado
Vi o Deus Menino em palhinhas deitado
Em palhinhas deitado, em palhinhas estendido
Filho duma rosa e dum cravo nascido»
Ou
«Pastorinhos do deserto
Correi todos, vinde ver
A pobreza da lapinha
Onde Cristo quis nascer»
Depois dos vivas aos senhores da casa mais aos seus meninos, gerava-se a expectativa no grupo. Olhos fitados numa janela com a luz a espreitar, era o estender de mãos à procura dum trocadito que era lançado com algumas recomendações: – «olhai lá se prá próxima trazeis uma gaita mais afinada!…» ou: – «há por aí uma voz que até mete medo!…» ou, na melhor das hipóteses: - «muito bem, por isso lá vão 25 tostões!»
O giro estava traçado – saímos da Igreja, vamos ao Sr. Abade (P.e Ramiro) – «Ó… dali só vêm restos de hóstias e bolachas Maria (das pequenas)… Bom, depois vamos por Vale de Suz ao Sr. Urbaninho – isso, isso» – animados com a certeza de melhor oferta. «Seguimos pelo 5 merreis – é lá, isso não que ele solta-nos os cães!… Depois vamos ao Sr. Protazinho»… e lá fazíamos a estafeta serpenteada por entre o caminheiro carregado de ilusões e canseiras… e alguns tostões na boina. Recordo um dos Janeiros (como este que estamos a passar), em que a noite apareceu mais cedo, escura e fustigada por forte ventania. Quis o nosso grupo encurtar o caminho para fugir ao temporal que se fazia anunciar. Rápido, rápido… vamos, vamos… dás só dois vivas e pronto!… Avança o Manel, sempre o mais fortalhaço e destemido e logo a ondulada perseguição em estreita correria. Ali para os lados da Cruz, houve uma troca de passos e, num ápice, surge o grito agoniante do Manel, seguido pelo chafurdanço na presa. A sorte é que a água ficou-lhe pela cintura, mas… lá se foi a boina com algumas branquinhas!…
Mas nem tudo correu mal. Chegados a casa dos meus avós, toca a acender o lume para secar o Manel. Ali mesmo por cima do espreguiceiro, espreitavam uns chouricitos e farinheiras. Foi mesmo com a vara de varejar o castanheiro que duma estocada vimos voar 4 chouriços… e como as brasas aqueceram o animado apetite dos cantores de Janeiras… mesmo de bolsos vazios!…
…/…/…
Uns anos mais passados, lá fui encontrar alguns dos meus companheiros na conquista dum lugar para a “DANÇA do MENINO”
«…Tu dás para pastor… este também dá para pastor… Ora, guardamos este papel também de pastor para o Firmino que não tarda a vir do Ultramar… e ele decora-o num instante!… Então Terezinha a Dança do Menino só tem pastores?!» – pergunta alguém lá do fundo. «Não rapaz… também tem pastoras!…» e continuou: – «o Sr. Brito do Padrão será o capitão Bambalho (tenho ali uma farda que lhe vai ficar um mimo); ali o Sr. António Rei, claro, vai fazer de rei Herodes; a Lucília a raínha… o Sr. Dias dá mesmo para velho Semião… o Sr. Albino raboto, o conde Fraím»… etc… e a este rapaz coube-lhe o papel de “príncipe”.
Aquilo é que era uma corrida para o Centro Paroquial. Papéis em punho, memorizar as entradas e as saídas, decorar aquelas páginas todas, provar as indumentárias, era uma roda-viva de entusiasmo e dedicação. Não podia ser de outra forma já que a nossa Directora/Ensaiadora/Modista (Terezinha Mota) era sempre a primeira dum largo sorriso nos lábios e uma extraordinária dedicação às verdadeiras causas no empenho por fazer sair a peça na perfeição.
…Tudo a postos para a primeira apresentação, e o nervoso miudinho nas últimas passagens pelos papéis.
O Sr. Silva experimenta o correr das cortinas, oleando as roldanas que faziam cá uma chiadeira… espeta mais um galiota nos cenários, dá uma espreitadela por entre uma “talisca” entre tábuas descasadas e segreda-nos, esfregando as mãos de contente: – «até já há pessoal em pé!…»
Encontro a um canto o Sr. Antero (que fazia o papel de um dos doutores da lei) e diz-me baixinho: – «Olhe menino, isto é, letras como panelas… não sei ler nem escrever, como decorei isto tudo ao menos consolo-me de olhar para elas!…»
Surgem as fortes pancadas no palco… o Sr. Joaquim (camolas) com a flauta e os Soutos com os trombones, atacam com o musical de abertura e … e …
…Vou apenas contar este passo: – o rei Herodes após a cena da perseguição e matança dos meninos inocentes, também morre e eu sou naturalmente coroado. Mas aquela coroa pesadíssima, a capa quase a espalhar-se pelo chão e aquele espadão enorme, parece que me davam ainda mais intranquilidade e… medo!…
Logo a seguir, tinha que me bater com Singo (o Sr. Emílio, homem que na vida real sempre foi de poucas falas, de semblante carregado… e até se contava que por meia dúzia de treta, assapava uns borrachos a qualquer um).
Bom, em plena luta, o Singo teria que cair vencido. Agora vem o mais importante da história: eu aproximo a espada do seu rosto e digo em alta voz: – «fica-te malvado» … mas, o peso daquele objecto enorme foi de difícil controlo e piquei-lhe levemente o pescoço, fazendo saltar uns pingos de sangue!… Ó homem dos diabos, qual papel, qual quê… levanta-se, vem ao meu encontro, encosta o vozeirão ao meu ouvido, sussurrando: – «quando esta merd… acabar, vou-te partir todo meu caralh…» e voltou a cair “desmaiado”… mas de olhos fitados em mim!…
Olhem, nem terminei o verso. Saltei da cena por detrás do palco e lancei-me em fuga, ainda sentindo-lhe a marcha acelerada, colada aos meus calcanhares!…
Num rápido, atirei-me contra a porta de casa, deixando em espanto os meus avozinhos, quando viram pela frente um “príncipe” de túnica desajeitada, carregando numa das mãos a coroa de “rei” e na outra o espadão a rastejar pelo chão fazendo faíscas e gritando: TRANQUEM AS PORTAS!…
… Que as Janeiras cantadas se possam aplaudir noutros palcos da vida, continuadamente iluminados pela luz divina, feita estrela do presépio do Menino Jesus nascido, adorado por pastores e reis e possam muito em especial neste ANO NOVO 2022 ser envoltas numa síntese de harmonia onde a PAZ, a SAÚDE e o AMOR, sejam as grandes mensagens de SUCESSO!…
José Neto – Doutorado em Ciências do Desporto; Docente Universitário; Investigador
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